O povo Japonês tem a cultura de criar frases(yojijukugo) que sintetizam profundamente idéias e sentimentos filosóficos e culturais, fazem isto reunindo alguns ideogramas que tornam possível divulgar estes conhecimentos. Um exemplo significativo é a expressão “ichi go ichi e”, que transmite um ideal estético ligado aos conceitos zen-budistas e à consciência da impermanência de tudo que existe, e que por isto todos os instantes devem ser valorizados, principalmente os momentos que estamos com outras pessoas, seja um simples encontro, uma reunião familiar ou de negócios ou ainda um keiko(treinamento) de artes marciais Esta expressão vem sendo interpretada de diversas formas, ao longo dos séculos, aqui vou citar duas “uma vez um encontro” e “agora ou nunca mais”. A primeira vez que tive contato com este provérbio Japonês, foi em Hiroshima num encontro com meu grande amigo Narita Sensei, quando ele olhou para o cèu, apontou para umas nuvens que estavam acima de nós e disse “este céu que está agora acima de nós dois jamais se repetirá” e pronunciou, “Ichi go ichi e”
Apesar de já ter sido analisada exaustivamente sob a ótica do Chanoyu ou Chá-Do (Cerimônia do Chá) do Shodo(Caligrafia), Sumie e tantas outras, vamos tentar olhar este conhecimento, especialmente sobre a ótica das artes marciais.
No ambiente marcial, a importância do Ichi-go ichi-e aparece em vários momentos. Por exemplo, quando se reforça a idéia de que não existe um Keiko igual a outro; por tanto, se o aluno não compareceu a um determinado treinamento, aquele especificamente, nunca mais vai se repetir. As oportunidades de aprendizado, as interações que poderia ter tido com os colegas, os insights, tudo daqueles momentos foi perdido, não existe “vídeo tape” ou qualquer tipo de resgate tecnológico que nos propicie resgatar as vivências e experiências que poderíamos ter absorvido daquele treinamento. Como diria uma verdade Universal: “Você nunca pode se banhar na mesma água do rio, pois ela nunca é a mesma”. O rio da Vida não pára, está em eterna mudança. Como diz a tradição budista, “só existe uma coisa que podemos ter certeza no universo, é a eterna mudança, a impermanência, tudo no universo está sempre em eterna e permanente mudança, desde a partícula mais minúscula e simples até os organismos mais complexos como nós seres humanos. Tanto a pessoa com que você se relacionou ontem, como você mesmo, hoje não são mais os mesmos, seja em termos físicos ou aspectos psico-sociais, a sociedade, a família, os amigos, ou até a mídia, estão sempre exercendo alguma influência sobre o nosso nível de consciência, nossa capacidade de empatia, estamos a todo o instante sofrendo influências do meio, sejam elas influências físicas, sejam influências psicológicas. Quanto mais caminharmos nessa linha de vislumbramento, mais vamos tomar consciência do valor e da importância de valorizar o presente.
Outro exemplo bem palpável está na prática das técnicas, dos Katas ou Katis. Dependendo da arte praticada, cada técnica que executarmos será única, terá os seus detalhes, as suas nuances; mesmo se pegarmos a mesma técnica como exemplo, podemos executá-la 5.000 vezes, nas 5.000 vezes ela vai ser diferente, nunca será igual. Por isso, e principalmente por isso, devemos tratar com reverência, respeito e atenção total ao momento de cada execução de técnica ou movimento, pois ela é única. Nunca se repetirá, pois sempre trará algo diferente.
O mais extraordinário, é que podemos levar este aprendizado e esta consciência a todas as nossas relações com o mundo. É assustador, mas ao mesmo tempo mágico, despertarmos para a consciência de que todos os instantes são únicos. Isto vale para as oportunidades que temos e que perdemos na vida. Tem uma expressão da cultura Gaúcha que diz: “O Cavalo encilhado só passa uma vez”. As oportunidades são raras e devem ser aproveitadas.
A percepção desta verdade universal, de que estamos sempre em eterna mudança, me faz lembrar as palavras de um pensador hindu chamado Krishamurti, por um outro viès ele nos diz que devemos sempre olhar tudo como se fosse a primeira vez e isto vale para qualquer coisa, desde uma simples pedra, uma planta, até uma pessoa. Assim ele disse: “O pensamento construiu estes símbolos, imagens, ideias. Posso eu olhar, primeiro, a árvore, a flor, o céu, a nuvem, sem uma imagem? A imagem da árvore é a palavra que aprendi dando certo nome à árvore, diz sua espécie e lembra sua beleza. Posso olhar àquela árvore, àquela nuvem, àquela flor, sem pensamento, sem a imagem? Isso é bem fácil de fazer, se você já fez. Mas posso eu olhar sem imagem para um ser humano do qual sou íntimo, que considero como esposa, marido, filho? Se não posso, não existe relação verdadeira: a única relação é entre as imagens que nós dois temos.” e ainda mais; “Embora você tenha me insultado, embora tenha me ferido, embora tenha dito coisas sórdidas sobre mim ou me elogiado, posso olhar para você sem a imagem ou a memória do que você me fez ou me disse? Vejam a importância disto, pois apenas uma mente que retém as memórias de ferida, de insulto, está pronta para perdoar se ela tem essa inclinação de fato. A mente que não fica armazenando seus insultos, os elogios que recebe, não tem nada para perdoar ou não perdoar; e, assim, não há conflito.”
Numa tentativa de facilitar o nosso entendimento e evitar uma censura de nosso ego, ele cita o exemplo de uma Flor: Devemos olhar a flor como se fosse a primeira vez que a víssemos e não deveríamos nomina-la, por exemplo, olhar sem pensar isto é uma Rosa ou isto é tal coisa, por que ao fazermos isso estaremos trazendo para o presente todas as definições imagens e conceitos que temos sobre aquela planta, aquele objeto ou até àquela pessoa. Pelo que tenho percebido pela minha experiência é mais complicado exercitar isso nas nossas relações com pessoas, do que com aqueles que não são “iguais” a nós, talvez por isto Krishnamurthi começa com o exemplo da flor. Quando olhamos para uma pessoa, ao vincular-mos ela a um nome, trazemos àquele momento todas as lembranças, conceitos e pré-conceitos que temos dela
Para ter um novo tipo de consciência e de comportamento, devemos cultivar hábitos que transformem nossa relação com o mundo um destes é cultivar a atenção total ao presente, estar presente com todos os nossos sentidos, visão, audição, olfato, aliados à nossa percepção dos outros, com sensitividade e empatia.
Na prática do Aikido encontramos vários ensinamentos para a vida, as grandes oportunidades de nos tornarmos cada vez melhor surgem a todo o momento durante uma prática psicomotora, carregada de filosofia, como a do Aikido. Desde coisas mais óbvias, como não responder uma agressão com outra agressão, até as mais sutis como a prática da gratidão (GIRI), por isso cada treinamento é também uma oportunidade de crescimento como ser humano. Tudo que se pratica e se desenvolve dentro do tatame pode e deve ser levado para fora do Dojo. Para nosso melhor convívio social, com nossos semelhantes, com os outros animais e a natureza em geral.
Estas colocações me fazem lembrar das inúmeras vezes em que o seito (aluno), interrompe uma técnica no meio, porque acha que não está correta, então para e tenta começar tudo novamente. Esta é uma atitude equivocada, por vários motivos: primeiro, porque o praticante deve se habituar a fazer o movimento até o fim, pois numa situação real não haverá oportunidade de refazer o movimento, sendo uma questão de “agora ou nunca mais”; segundo, porque durante o treinamento o erro faz parte do aprendizado. O erro não deve ser execrado, ele é nosso professor, nós aprendemos com os erros, olhando eles de frente e tendo consciência deles é que vamos crescer, se o ignorarmos e o colocarmos “para baixo do tapete”, jamais cresceremos.
Não deixemos para depois. Vamos viver totalmente o presente, viver como se não existisse uma segunda chance, “agora ou nunca mais” ICHI GO ICHI E.